terça-feira, 15 de julho de 2008

Recesso!


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este blog permanecerá em recesso de 15 de Julho a 04 de Agosto, em razão do Termo de Inverno de L'Abri.

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quarta-feira, 9 de julho de 2008

André Petry e Tony Belloto sobre a Fé dos Homofóbicos: VEJA e COMPREENDA

Na quarta feira 25/06, evangélicos promoveram uma manifestação contra o projeto de lei contra a homofobia. Alguns tentaram "invadir" o senado para apresentar suas reivindicações pessoalmente.

Duas reações me chamaram a atenção - a coluna de André Petry, na Veja, e a sua versão inferior, no dia 02/07, por Tony Belloto. O primeiro compara a resistência evangélica ao projeto de lei com a resistência às leis contra o racismo, e afirma que tal atitude seria "tão reacionária" quanto uma Ku-Klux-Klan defender um "direito" ao preconceito. E argumenta que haveria um erro de interpretação dos evangélicos, quando estes entendem que a lei seria uma limitação à sua liberdade. Diz Petry:

Alegam que a liberdade religiosa fica limitada porque combater o pecado vira crime. É um duplo equívoco. O primeiro é achar que uma doutrina de crença em forças sobrenaturais autoriza o fiel a discriminar o herege. O segundo é atribuir à lei valor moral. O direito penal não é instrumento para infundir virtudes. É um meio para garantir o convívio minimamente pacífico em sociedade. Matar é crime não porque seja imoral, mas porque a sociedade entendeu que a vida deve ser preservada. Dúvidas? Recorram ao Supremo Tribunal Federal. Na democracia, é assim. Lei não é bíblia de moralidade.

Daí Tony Belloto se entusiasmou e não apenas postou uma foto da Ku-Klux-Klan, mas afirmou que "A Ku-Klux-Klan faria boa companhia aos cristãos homofóbicos de Brasília." Descreveu a oposição evangélica como "Jihad Particular". E indicou o filme "Missisipi em Chamas", para temperar mais a discussão.

O texto do Petry tem um pouco mais de conteúdo que o do Belloto, que se contenta em lançar uma bomba de efeito moral. De modo que vou comentá-lo primeiro.

André Petry

Em sua opinião, a posição evangélica seria uma "discriminação do herege", e seu fundamento último seria a "crença em forças sobrenaturais". Bem, não é preciso dizer que isso constitui uma bobagem sem tamanho. O fundamento da oposição cristã ao homossexualismo é uma determinada antropologia, não a crença em forças sobrenaturais. Mesmo quando estas são trazidas à frente, como justificativa, no fundo o ponto em questão é a natureza humana e o lugar da sexualidade na vida humana.

Mas é claro que há outras razões para os evangélicos atribuirem a Lei à "obra do demônio". Outras muitas razões, todas bem terrenas, sociológicas e até políticas. A resistência tem a ver com a perceção de transformações profundas e estruturais nas relações humanas, no ocidente e no próprio Brasil. Entender o que está acontecendo é ler esses temores e motivações mais profundas, sociológicas, religiosas e culturais, abaixo do discurso feito ao microfone.

Petry errou pra mais de metro, portanto, em sua interpretação do que está acontecendo. Faltou hermenêutica; faltou antropologia. Estaria tudo bem, não fosse o nosso mau antropólogo um colunista da Veja.

Ao mesmo tempo, Petry mostrou um evidente preconceito contra a religião em sua fala. O que ele quer dizer? Que descrença em realidades sobrenaturais, e uma visão naturalista de mundo, dão a ele o direito de discriminar "hereges anti-modernos", como os evangélicos? Que por terem tais crenças esquisitas eles estão excluídos de discussões e manifestações na arena pública?

A definição de religião de Petry, ao menos aquela implícita em suas observações, é um pouco pobre, para dizer o mínimo.

Preciso comentar ainda as idéias de Petry sobre moralidade e direito. Veja só o que ele diz:

O segundo [erro] é atribuir à lei valor moral. O direito penal não é instrumento para infundir virtudes. É um meio para garantir o convívio minimamente pacífico em sociedade. Matar é crime não porque seja imoral, mas porque a sociedade entendeu que a vida deve ser preservada. Dúvidas? Recorram ao Supremo Tribunal Federal. Na democracia, é assim. Lei não é bíblia de moralidade.

Ora, ora... ;-D

Em primeiro lugar, este é o caminho da ruína cultural. É uma meia-verdade que a lei não é instrumento para infundir virtudes. Matar é crime porque a sociedade entendeu que devemos preservar a vida. Mas eu pergunto: porque a sociedade entendeu isso? Não é porque ela entendeu que matar é moralmente incorreto? Afinal, em muitas sociedades se mata. Deveríamos recomendar outra coisa, se aquela sociedade não entendeu que a vida deve ser preservada? E se a sociedade entender que os evangélicos deveriam ser enjaulados? Pior: e se ela entender que os homossexuais deveriam ser mortos?

Petry nos presenteia com uma completa ficção, quando diz que foi a lei que proibiu o assassinato. Isso jamais aconteceu. De onde será que ele tirou isso? De algum manual empoeirado de positivismo jurídico?

Muito pelo contrário, a sensibilidade moral das pessoas é que as obriga a fazer a maior parte das leis. A lei não infunde moralidade; é infundida por ela.

Consideremos, por exemplo, a lei da homofobia. Tanto o legislador, como a mídia, os movimentos homossexualistas, e o próprio senhor Petry apelam para a nossa sensibilidade moral ao justificar o projeto de lei. Veja o que o Sr. Petry diz:

"Outra coisa é humilhar os gays, apontá-los como filhos do demônio, doentes ou tarados."

"O que essa proposta pretende dar aos gays, e sabe-se lá se terá alguma eficácia, é aquilo a que todo ser humano tem direito: respeito à sua integridade física e moral."

"Os seres humanos diferem das coisas porque, além de tudo, têm dignidade."

Ora, não disse o Sr. Petry que a lei não é bíblia de moralidade? Porque então ele deseja nos entulhar com esses elevados ideais de moralidade - não humilhar, respeitar, reconhecer a sua dignidade - para defender a lei da homofobia? Pode-se desenvolver uma legislação não-moral para defendê-los, mas o seu fundamento não será mais jurídico. Será moral.

Puxa, ver uma contradição tão gritante, sobre um tema tão sério, num texto tão curto, de uma revista tão influente, dá vontade de chorar. Uma coisa horrorosa mesmo.

A propósito, se a sociedade não quiser aprovar a lei da homofobia (não nos esqueçamos de que boa parte dos brasileiros aceita a moral cristã), a resistência ao comportamento homossexual não será crime. Mas dentro do raciocínio do Sr. Petry, ela ainda será imoral, injusta, inumana, etc. Ora, deveríamos por isso condená-la? Deveria a lei brasileira seguir a bíblia do Sr. Petry?

Talvez o Sr. Petry não o saiba, mas não é possível dar conteúdo a um sistema de leis, sem apresentar pressuposições antropológicas e, enfim, morais. E sabe de uma coisa? Eu concordo com ele: precisamos defender a dignidade dos homossexuais. Por razões morais. Meu senso moral me diz que precisamos respeitar a dignidade dos homossexuais. Isso me estimula até mesmo a pensar que algumas leis a respeito fariam um grande bem.

Mas o problema com a lei da homofobia é que ela protege alguns princípios morais à custa do estupro de outros. Nós, evangélicos, estamos justificados em rejeitá-la incondicionalmente. Ela está carregada de valores morais que não aceitamos, e pessoas desinformadas a respeito como o Sr. Petry querem nos fazer acreditar que nós é que queremos impôr uma moralidade aos outros.

Essas pessoas querem usar a moral para justificar a aprovação de uma lei, mas ao mesmo tempo querem separar lei de moralidade, para silenciar toda a oposição moral a essa lei. Meu Deus. É uma contradição tão grosseira que, nas palavras de Petry, "é difícil crer que seja de boa-fé".

Tudo isso é uma grande hipocrisia. A lei não é bíblia de moralidade, mas as pessoas que fazem a lei sempre trazem as suas próprias bíblias. Pessoalmente, eu dispenso a bíblia moderna do Sr. Petry.

Tony Belloto

E quanto aos comentários de Tony Belloto? Como poderiam ser mais preconceituosos em relação aos evangélicos? Que absurda comparação foi aquela, com a Ku-Klux-Klan, estimulando entre os leitores o medo e o ódio aos evangélicos por associação? Sugerindo que a atitude dos evangélicos contra o comportamento homossexual seria comparável à atitude dos racistas que queriam "fazer piadas" "queimar as casas", "açoitar as costas" e "tirar as vidas" dos negros?

A comparação é descabida. A KKK jamais fez qualquer coisa que prestasse. No seu currículo consta apenas a violência. Já os evangélicos brasileiros não tem qualquer histórico de violência ou perseguição ativa de minorias. Nem mesmo dos homossexuais.

O que o Sr. Belloto faz além de ganhar dinheiro do alto de sua coluna na VEJA? Será que ele tem idéia do que fazem todas as semanas milhares de pastores e missionários evangélicos, sem falar dos religiosos católicos, cuidando de pessoas sofridas, pobres, viciadas e escravizadas pelo crime nas favelas deste país? Sua crítica não reflete um patente preconceito?

Um típico moderno ingrato, que celebra as suas liberdades individuais e os avanços da modernidade, sem tomar conhecimento da importância do cristianismo para que tal mundo viesse à existência.

Provavelmente o Sr. Belloto ignora que a abolição da escravatura só começou no mundo pelo trabalho de um evangélico, o inglês William Wilberforce (também tenho um filme na manga: "Jornada para a Liberdade" - Amazing Grace, em inglês). E que vários dos grandes defensores da abolição na América eram evangélicos. E que os protestantes no Brasil eram abolicionistas. E que muitos evangélicos lutaram pelos direitos civis na América.

Será que ele sabe que o movimento pentecostal, que domina o movimento evangélico brasileiro, começou entre negros americanos e foi instrumento de emancipação para eles e para muitas mulheres? Será que ele sabe que a maior parte dos negros brasileiros é pentecostal? E que as Assembléias de Deus tem o maior contingente de ministros religiosos negros do Brasil?

Ele não sabe. Se soubesse não faria essa torpe, indecente e ridícula comparação dos evangélicos de Brasília com a Ku-Klux-Klan. Ele teria vergonha (espero).

Raça não é comportamento. Não é um valor com carga moral. Não se pode colocar o comportamento homossexual no mesmo balaio, junto com a discriminação por sexo ou por raça, ou por nacionalidade. As coisas são simplesmente diferentes.

Mas com certeza, a KKK faria boa companhia àqueles cristãos homofóbicos de brasília (os realmente homofóbicos). Assim como o sr. Tony Belloto.

Só a Heterossexualidade é Excêntrica

Os cristãos tipicamente crêem em seres sobrenaturais, mas não é por isso que o cristianismo rejeita o homossexualismo, como sugere o sr. Petry do alto de sua paupérrima teologia moral.

Para o cristianismo, basicamente, a relação homoerótica é falsa, inautêntica, porque não envolve uma entrega a um semelhante "de outro tipo". A relação "hetero" é uma ponte entre dois mundos estranhos, e por isso mesmo é corajosa e ex-cêntrica, para fora do ego em direção ao outro. A relação "homo" busca "o meu tipo" dentro de outro, ao invés de buscar o irredutivelmente diferente. Ainda que a pessoa seja outra, no nível sexual a alteridade é eliminada. Por isso mesmo, para o cristianismo, não pode existir uma família cujo centro seja uma relação homossexual. Essa relação é deficitária na posição cristã, não por causa de algum dogma irracional, mas porque é errado fechar um círculo relacional (em qualquer nível, inclusive no nível do sexo) no qual a diferença seja eliminada exatamente no ponto em que deveria ser corajosa e entusiasticamente vivenciada.

O movimento homossexual fala muito em "diferença" e em "igualdade de direitos", mas o que ele quer é o direito de evitar a verdadeira diferença sexual sem ser reprovado por isso. Isso é inautêntico. Ninguém deveria ter o direito de esconder este fato atrás de uma legislação. As pessoas que escolherem este caminho precisam ser respeitadas, mas o caminho em si não pode ter uma proteção legal especial. Isso, sim, é uma interferência ilegítima da lei no campo moral.

A aventura sexual não deveria ser um exercício narcisista. Como os defensores das bases evolucionárias e genéticas do homossexualismo vem demonstrando, o comportamento homossexual é compartilhado por todos os animais (inclusive o animal humano), mas isso não significa de modo algum que ele seja humanístico no sentido pleno. Isso só pode ser decidido no nível pessoal e interpessoal, no nível ético da vida humana. Por esse ângulo, no entanto, é evidente o ethos con-centrado, narcísico do comportamento homossexual.

O mero fato de muitos de seus defensores apelarem para o comportamento dos animais já depõe contra eles. Só a negação de qualquer ética sexual pode justificar isso.

Todo aquele desfile colorido e esquisito, de pessoas "diferentes", "alternativas", que não se encaixam nos padrões comuns, apenas disfarça a verdade: boa parte delas falhou em lidar com a diferença, e agora quer apresentar essa falha como uma genunína diferença. É trágico que elas estejam encerradas nessa condição; mas nem por isso ela se torna correta.

O homossexualismo é excêntrico, sim, em relação ao heterossexualismo; ou seja, como fenômeno social e até contracultural. E precisamos aprender a respeitar e conviver com a homossexualidade. Mas o fato é que a relação homossexual é excêntrica para compensar sua falta de excentricidade. Só a heterossexualidade é ontologicamente excêntrica, excêntrica onde deve ser.

O que Precisamos Aprender

Para finalizar, eu diria que os evangélicos precisarão aprender duas coisas.

Em primeiro lugar, aprender a manter uma posição com dignidade. Muitos cristãos se acovardam na hora de criticar abertamente o que precisa ser criticado, com medo de serem considerados intolerantes. Mesmo diante de críticas absurdas e cheias de elementos abusivos como as comentadas acima.

A despeito disso, precisamos fazê-lo. Não podemos temer tanto a opinião dos homens. Os cristãos primitivos eram acusados pela opinião pública como "devoradores de crianças" (os pagãos não conseguiam entender a coisa de "comer a carne e beber o sangue do filho de Deus" :-D). Pessoas como Tony Belloto continuarão dizendo esse tipo de bobagem preconceituosa contra os cristãos.

Em segundo lugar, precisamos encontrar um jeito de defender os direitos dos homossexuais, se não quisermos ter a nossa posição sobre o assunto definida e manipulada pela noção ideológica de "homofobia". É evidente que o termo foi cunhado a fim de empacotar toda e qualquer crítica aberta ao comportamento homossexual. O conceito não foi desenhado para libertar os homossexuais de alguma prisão, mas a fim de promover a repressão dos críticos da promiscuidade homossexual. Será (e vem sendo) uma desgraça, no entanto, se os evangélicos simplesmente vestirem a "carapuça", sem pensar com autocrítica no que pode ser feito para promover a humanidade do homossexual.

quarta-feira, 2 de julho de 2008

Tem jeito de ser Cristão sem Igreja?

É até um "lugar-comum" dizer que a igreja evangélica está em crise. Parece que ela vive em crise. É o seu estado normal. A afirmação nem tem mais apelo.

Quem se envolve de perto com a rotina das igrejas evangélicas sente-se às vezes bem cansado com a enorme distância entre as expectativas e promessas de realização religiosa e as misérias da divisão, da pobreza humana e dos conflitos de poder que acontecem lá dentro. Daí se pergunta: não tem jeito de ser cristão, sem igreja? ;-D

Kevin Vanhoozer e a Igreja

Acabei de ler o capítulo de Kevin J. Vanhoozer na coletânea The Futures of Evangelicalism: Issues and Prospects, editado por Craig Bartholomew, Robin Parry e Andrew West. O Título do capítulo é "Evangelicalism and the Church: The Company of the Gospel".

Vanhoozer é um dos interessantes teólogos ingleses que apareceram nos últimos anos. Embora não tão influente quanto McGrath, é sem dúvida interessante e tem algo a dizer. Sua tese de doutorado, publicada pela editora da Universidade de Cambridge, tratou de Paul Ricoeur (Biblical Narrative in the Philosophy of Paul Ricoeur: A Study in Hermeneutics and Theology), e ele vem lançando diversas obras muito ricas. Para citar duas: The Drama of Doctrine: A Canonical-Linguistic Approach to Christian Theology (O Drama da Doutrina: Uma abordgem canônico-linguística à teologia cristã) e Is There a Meaning in this Text? - Esta última traduzida pela Vida Acadêmica: Há um Significado neste Texto?

Pois bem; no capítulo Vanhoozer reconhece que o sucesso exterior da igreja evangélica mascara a sua fraqueza teológica quando o tema é "igreja". A eclesiologia evangélica está "no nível da pobreza". Um das razões disso tem a ver com a origem do movimento, que é extremamente "paraeclesiástico" e focalizado na salvação do indivíduo. Mas não é só a teoria eclesiológica que é ruim; a pobreza atinge a prática e a adoração evangélica, que tendem a se dobrar ao individualismo e ao consumismo.

Muita gente apontou o problema. Stanley Grenz (o autor daquele livro sobre pós-modernismo, da Vida Nova) observou que a identidade evangélica balança entre os pólos do proposicionalismo (doutrina correta) e pietismo (ênfase na piedade). Sua solução: que teologia seja vista como uma articulação do mosaico de crenças da comunidade cristã. O centro estaria mesmo no compartilhamento de uma experiência comum de fé. E a eclesiologia viria para o centro, substituindo a ênfase na doutrina correta.

A resposta de Vanhoozer a isso é muito interessante:

Que tipo de identidade Cristã as igrejas evangélicas deveriam nutrir? Me sinto infeliz com a dicotomia entre piedade e proposições. Eu quero a minha verdade, e quero sentí-la. A explicação bifurcada de Grenz da identidade evangélica relembra a análise bifurcada da modernidade em Kant. [...] Grenz, como Schleiermacher, simplesmente escolhe elevar a ética de Kant e a sua Crítica da Razão Prática sobre a sua metafísica e Crítica da Razão Pura. Mas o próprio Kant introduziu um terceiro termo: a imaginação. Eu creio que os evangélicos deveriam fazer algo similar (p. 50).

Ricoeur de fato discute bastante o papel da imaginação, em suas discussões hermenêuticas, desenvolvendo as idéias de Kant. Vanhoozer retoma isso na sua tese doutoral sobre Ricoeur, mostrando como a esperança está ligada à imaginação, etc. Mas veja onde ele chega com isso:

A identidade evangélica é melhor vista como formada pelo que podemos chamar de imaginação evangélica, ou seja, pelas narrativas bíblicas que apresentam o mundo como ele realmente é: criado, caído e redimido. Por imaginação eu não me refiro à capacidade de produzir imagens de coisas que naõ estão aqui, mas à capacidade de apreender uma dimensão da realidade que escapa à percepção sensória. A imginação é uma faculdade cognitiva distinta que capta diversas pessoas e eventos juntos em um tipo de visão sinótica; é a habilidade de captar diversas partes em termos de um todo (ou história) unificado (p. 51).

A importância do que Vanhoozer diz aqui não pode ser diminuída: de certo modo ele localiza a percepção da realidade das coisas - e isso vem de fato de Ricoeur, da noção de imaginação como "sonda" do real, e de Kant, enfim - na imaginação. Isso se encaixa bastante com muito do que Chesterton diz, sobre a percepção da realidade como algo além da mera coerência lógica. Com isso, ele relativiza o lugar do conhecimento doutrinal e da ética, introduzindo um elemento estético na percepção das coisas.

Ao mesmo tempo, ele não tira o lugar do evangelho para alcançar isso; o que ele faz é mudar o "órgão de percepção". Não é meramente a "experiência" (liberalismo) ou a "razão" (racionalismo teológico, fundamentalista ou não).

Ser evangélico, então, seria ser capturado pela narrativa evangélica; ter a imaginação aberta por ela, e perceber o mundo de outro jeito - como ele é de fato. Sem a narrativa, os contornos reais das coisas ficam difusos. Ser evangélico é, portanto, ter uma experiência de percepção diferente, além dos limites da mera razão ou da mera experiência. É "pegar" o sentido total da coisa.

Vanhoozer apresenta ainda algumas peças interessantes de crítica cultural e teológica; observa que boa parte dos evangélicos vê a igreja como um "soma de indivíduos", uma criação dos indivíduos (ao invés de criadora deles), critica a Macdonaldização da igreja (a técnica e a homogeneização dominando tudo), e avalia a tendência de alguns teólogos de elevar a idéia de comunidade - a eclesiologia - como o fundamento e o critério final da teologia (John Milbank, Stanley Hauerwas, John Howard Yoder e Stanley Grenz). Quanto à essa última tendência, bastante pós-moderna, ele responde:

Como temos visto, ser evangélico é insistir sobre a prioridade da palavra de Deus e dos atos de Deus sobre a fé, a resposta, ou as experiências de homens e mulheres e, eu adicionaria, sobre a fé, a resposta, ou as experiências de comunidades (p. 69-70).

"Muito bem", eu diria. E isso torna clara a visão de igreja de Vanhoozer: a "companhia do Evangelho". Para ele a igreja é o "tema", o "resultado", a "incorporação" e o "agente" do evangelho (p. 71). De sua fonte à sua missão, a igreja tem o seu centro no evangelho, na narração dos atos de Deus.

O que está bem de acordo com a definição da identidade evangélica como baseando-se na apreensão da narrativa evangélica, por meio da imaginação.

Daí Vanhoozer retoma as quatro "marcas" clássicas da igreja verdadeira - una, santa, católica e apostólica, e reinterpreta a falha evangélica em preencher essas características - especialmente a "unidade" - interpretando-as escatologicamente: em termos da dualidade "já/ainda não".

A solução é bastante útil. De fato ele já havia comentado antes que a tensão entre "igreja invisível" (pura) e "igreja visível" (imperfeita e ambígua) pode ser proveitosamente recolocado em termos do já/ainda não escatológico. Para os evangélicos, que lutam com o problema da fragmentação, o modelo explica bem.

Eu não faria justiça a Vanhoozer se não comentasse o quadro final que ele pinta a respeito da natureza da Igreja. Ele compara o evangelho como um "script", e a prática comunitária do evangelho - a igreja - como a "dramatização", do evangelho.

O termo "companhia", vem do latim: "com" + "panis" = "com pão". Vanhoozer sugere que a igreja compartilha a visão de Deus (teologia), uma mesa comunitária (ética) e também é uma "companhia teatral", que oferece interpretações do evangelho, superiores à própria exegese. Essas interpretações seriam a qualidade sobrenatural de sua vida comunitária: the playerhood of all saints.

Tem Jeito de Ser Cristão sem Igreja?

Vanhoozer ajuda a gente da dar uma resposta. Em algum ponto, discutindo se a eclesiologia é fundamental, a sua resposta foi "sic et non".

Sic

Sim, de certo modo. Porque o evangelho não vem da Igreja. A igreja é que é uma "criatura do evangelho". Ser evangélico é, portanto, reconhecer isso. É reconhecer que os atos de Deus tem prioridade sobre a resposta humana. E o evangelho é o anúncio, a narração desses atos salvadores de Deus. Ser evangélico - e este é o espírito da reforma - é anunciar a prioridade do evangelho.

Então, para um evangélico, a igreja nunca terá prioridade sobre o evangelho. Ela nunca será o seu juiz. Pelo contrário, ela sempre estará sob a sua bênção e o seu julgamento. É por isso, também, que ela é "semper reformanda".

E assim a espiritualidade genuinamente evangélica sempre será profundamente pessoal. Sempre apontará a necessidade de conversão pessoal, e do homem se tornar um indivíduo diante de Deus, responsável por sua escolha, de certa forma autor de si.

Non

Mas isso tudo soa tão moderno que me faz até bater os dentes. É, de fato. Olhando de perto, o evangelicalismo é bem moderno.

Vanhoozer faz o contraponto: precisamos da comunidade, porque é nela que o evangelho pode ser vivenciado, incorporado, agenciado. Acho que poderíamos dizer o seguinte: de fato, o evangelho é o princípio da igreja. Mas quem disse que ele é recebido e compreendido individualmente?

Acho que o ponto é este. É que a salvação trazida pelo evangelho não é "pessoal" no sentido de "individual". Ela é comunitária. Mais do que isso: ela é cósmica.

Então não dá para ser cristão "sem igreja". Cristão "sem igreja" é "semi-cristão". É como o fiel antes da vinda de Jesus Cristo. Crê em Deus, mas ainda está esperando o cumprimento da promessa. A vida cristã não é feita só de "ainda não". Tem que ter um "já", e um aspecto do "já" é a comunidade. Deus habita a comunidade. Não é o indivíduo meramente; é a comunidade o lugar da presença de Deus. Ele habita uma cidade. A Igreja é que é um corpo e um templo.

Sem Igreja Em Tempos Pós-modernos

Daí a dificuldade hoje. Pós-modernidade é em grande medida fragmentação, pluralidade, consumo, customização. As pessoas se revoltam contra tudo o que é "macro", ou "estrutural", ou "universal", ou "padronizado". Não existe "verdade única". Daí que muita gente acha que não precisa ser membro de "igreja". Cada um segue o seu coração, busca a sua experiência própria, diferente. Ninguém é igual.

Só que, com isso, ao invés de vencer a modernidade, a gente fica mais moderno ainda. Porque fica mais individualista, mais separado do outro, mais fraco diante das grandes forças de homogeneização - o Estado, o Mercado e a Mídia (na forma atual, a trindade do capeta ;-D).

E a imaginação? Como projetar o "filme" da narrativa evangélica sem uma "tela"? Como "representar" sem um "palco"? Ser cristão sem construir comunidade é aderir a uma idéia, não a uma vida. É matar aula no dia da prova. É sumir no dia do casamento.

Cristão sem igreja, no mundo de hoje, é a mesma coisa que nada.

Quer ser pós-moderno mesmo? Procure uma igreja de bairro.

terça-feira, 1 de julho de 2008

Método para eliminar defeitos

Outro dia ganhei uma balinha no centro da cidade com a seguinte mensagem:

"Não podemos eliminar nossos defeitos mas podemos disciplina-los e restringi-los a tal
ponto que acabarão por desaparecer."

Confesso que me senti um tanto confuso. Mas por mim tudo bem se não puder eliminá-los, contanto que eles despareçam! ;-D